domingo, 7 de outubro de 2012

Sobre sociedades dançantes, clubes recreativos e gafieiras


Dia 22 de agosto de 2012 o Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro publicou dois decretos que contribuirão para a preservação da história da dança de salão carioca.  Por eles, é feita a desapropriação e o tombamento provisório do prédio onde atualmente funciona o Centro Cultural Estudantina Musical, que recentemente perdeu a ação de despejo movida pela Ordem Terceira do Carmo, proprietária do imóvel.

Salão da gafieira Estudantina, vendo-se ao fundo seu famoso slongan:
"Enquanto houver dança, haverá esperança"
Sobre as origens das gafieiras cariocas

Na época do segundo império brasileiro, com os bailes da corte se popularizando pela cidade, foram criadas as SOCIEDADES DANÇANTES, clubes onde se aprendia a dançar e onde se promoviam bailes frequentados por seus associados, vindos das camadas mais abonadas da sociedade carioca. Afinal, é bom lembrar, o baile era um dos poucos locais onde as pessoas podiam ter contato com o sexo oposto de maneira social. O Cassino Fluminense (foto abaixo) foi uma delas, sendo muito frequentado pela família real, especialmente pela Princesa Isabel e seu marido. Atualmente o prédio, situado na rua do Passeio Público, Centro do Rio, ao lado da Faculdade de Música da UFRJ, está sendo restaurado para abrigar um centro cultural.


Prédio do "Casino Fluminense", anos 30, já então sede do Automóvel
 Clube do Brasil que, ao falir, deixou o prédio ao abandono.



Depois das sociedades dançantes surgiram os CLUBES RECREATIVOS, fundados por comerciantes e profissionais liberais que não tinham acesso aos salões nobres ou às sociedades dançantes mais elitizadas, por preconceito, posição social ou raça.  O Clube Renascença (foto abaixo), por exemplo, foi fundado e era frequentado por negros, que tinham acesso restrito nos outros clubes. Na época da imigração portuguesa, já na segunda metade do século XX, muitos clubes recreativos foram fundados para promover bailes para as famílias portuguesas e descendentes (hoje esses clubes são bastante conhecidos e frequentados pela comunidade da dança de salão carioca, como a Casa de Viseu, a Casa do Minho, a Casa dos Poveiros e a Casa da Vila da Feira).

O Renascença Clube, exemplo de Clube Recreativo, tornou-se, com o tempo,
 uma referência em rodas de samba, mas quando foi criado, na década de 50,
 era um clube com diversas atividades sociais, dentre as quais os famosos bailes
 de dança de salão e os concursos de beleza, nos quais várias jovens afrodescendentes
 se projetaram como Miss Renascença.

Para quem não queria (ou podia) se associar a um clube, existiam as GAFIEIRAS, onde eram realizados bailes populares que podiam ser frequentados mediante pagamento de uma entrada.  Por seu ingresso barato e sua localização pouco privilegiada (geralmente em velhos sobrados do Centro ou do Subúrbio), eram locais mal vistos pela sociedade e frequentados por pessoas menos abastadas.  Ou por estudantes, caixeiros viajantes e boêmios em geral, atrás de boa música e de local onde se podia dançar sem os rigores sociais então impostos.

Essas característícas, diga-se de passagem, tipificaram tais locais antes mesmo de eles serem batizados pela população como GAFIEIRAS (a origem desse nome é controversa e fica para outra postagem). Encaixam-se nesse perfil a extinta sociedade dançante Kananga do Japão (1915-1927) e o Elite Clube, que funciona até hoje na Praça da República, embora não mais com bailes regulares de salão.

Uma curiosidade sobre o Elite Clube é que ele está instalado no que foi a residência de Duque de Caxias, que ficava observando, da sacada de uma das 14 janelas, o movimento das tropas dentro do Campo de Santana. Posteriormente, o casarão foi adquirido, em 1930, por Júlio Simões, que deixara a sociedade na Kananga do Japão. Em 1940 a casa passou para o controle da família Fernandez, estando atualmente sob direção da filha do patriarca, dona Ester, prima de Isidro, da Estudantina.

Sobre Júlio Simões, um dos sócios da Kananga e fundador do Elite, escreveu Marco Antonio Perna, em seu livro "Samba de Gafieira, a história da dança de salão brasileira": "Simões, que atuava também como fiscal de salão, criando esse personagem típico, definia gafieira como sinônimo de entrada paga e mistura de raça. Simões também criou o tablado para a orquestra".
Integrantes do conjunto Copa Vips, que, de 1960 a 1970,
 toda sexta, sábado e domingo, sustentou musicalmente os bailes
 da gafieira Elite, tendo como "crooner", curiosamente, o Gaguinho.
 Geraldo Barbosa, com o pandeiro na mão, em primeiro plano, ainda é vivo,
 segundo o blog Lá na Lapa, de onde a foto foi extraída.
 

Sobre o Centro Cultural Estudantina Musical

O Centro Cultural foi inaugurado em 22/12/1978 sob nome de Clube Recreativo Tiradentes.  Seu proprietário, Isidro Page Fernandez, resolveu fundar a nova casa nas instalações de uma antiga fábrica de meias, seguindo uma carreira que se iniciara na gafieira Elite, pertencente à família, e situada na Praça da República (ainda em funcionamento, sob direção de sua prima, Niezes Ester Page Lopes).


Foto do cartaz de inauguração do Clube Reacreativo Tiradentes, que enfeitava
a parede do salão do atual Centro Cultural Estudantina Musical.

A nova casa rapidamente passou a ser chamada de Estudantina por seus frequentadores, devido à proximidade da antiga gafieira de mesmo nome que funcionava no imóvel ao lado, assumindo, assim, seu passado histórico. Porém, a nova Estudantina marcou também a história da música e da dança cariocas. Muito mais até do que a antiga casa. No palco que desde 2008 leva o nome de Maria Bethânia passaram artistas como Luiz Gonzaga, Nana Caimi, Baden Powell, Hermeto Pascoal, Gilberto Gil, Liza Minelli, Fagner, Adriana Calcanhoto e Caetano Veloso, dentre outros cujas imagens encontram-se no álbum do diretor artístico Paulo Roberto. No salão, batizado de Maria Antonietta, se exibia a falecida mestra, que inspirou o samba de Aldir Blanc, Maurício Tapajós e Paulo Emílio, "Antonietta na Gafieira", e cuja notoriedade ajudou a manter na mídia a cultura da dança de salão. O local foi também palco de filmagem de vários documentários, filmes e novelas, ganhando fama internacional.

Além disso, a Estudantina era frequentada por intelectuais, jornalistas e políticos que a transformaram em point cultural e de resistência durante os anos da ditadura militar. "Enquanto nossas mulheres dançavam, nós discutíamos como mudar o mundo", comentou Ancelmo Gois em seu programa De Lá Pra Cá, da Tv Brasil, sobre os 200 anos de dança de salão no Brasil (acesse o link para esse vídeo na lista ao final da postagem).

Movimento "Tomba Estudantina"

Assim que viu como perdida a ação de despejo movida pela Ordem Terceira para a retomada do imóvel da Estudantina, Isidro Page Fernandez, Paulo Roberto dos Santos de Souza (diretor artístico) e Bernardo Carlos Cardoso ( promoter da casa conhecido com Bernardo Garçon ) iniciaram a coleta de assinaturas no abaixo-assinado posto à entrada da casa, além de contactarem pessoas de influência que os pudessem ajudar a salvar a gafieira
Da direita para a esquerda, Antonio de Aragão (JFD)
Bernardo Carlos Cardoso conhecido como Bernardo Garçon
(promoter da Estudantina), Isidro Page Fernandez (proprietário),
 Paulo Roberto dos Santos de Souza  (diretor artístico) e o locutor da casa.
A novelista Glória Perez lançou a campanha "Tomba Estudantina" pelo seu twitter. E Caetano Veloso, um dos assíduos frequentadores da casa, ao tomar conhecimento do iminente despejo da Estudantina, recordou os anos em que a frequentava e fez um apelo ao prefeito Eduardo Paes pelo seu tombamento, em sua coluna do Segundo Caderno do jornal O Globo, dia 19/08/12:

"Quando cheguei ao Rio com Bethânia, no final de 1964, começo de 1965, eu vinha do Méier para a Siqueira Campos [Copacabana], onde ficava o Teatro de Arena, que passou a se chamar Opinião por causa do espetáculo do qual minha irmã tinha sido convidada para participar, e, depois da função, íamos ao Cervantes, ao Zicartola e à Estudantina. (...) Toda vez que volto lá entro no mesmo estado de espírito que experimentei pela primeira vez naquela época. Uma alegria de festa (coisa essencial para mim) em situação peculiar. Era como os bailes do Apolo em Santo Amaro - ou os que periodicamente aconteciam na quadra de esporte do ginásio Theodoro Sampaio -, só que com a regularidade diária de um bar e com a cultura da dança ornamental de casal enlaçado desenvolvida ao nível do virtuosismo.
(...)
Os ornamentos feitos com o corpo que o tango cultivou, adaptados - via maxixe - ao ritmo do samba (e à informalidade brasileira), produzem no ambiente uma felicidade que as casas de tango de Buenos Aires - muito mais sérias e estáveis, respeitáveis e mundialmente reconhecidas - não conhecem. A Estudantina é, por essas e outras muitas razões, um elemento crucial na amarração da cultura carioca. Ela sustenta hábitos, estilos e gostos essenciais para a cultura da Cidade dos Brasileiros (como João Gilberto chama o Rio), em áreas geográficas do seu perímetro urbano (e em áreas mentais de seus habitantes) onde muitas vezes nem seu nome é conhecido".

Outro destaque dessa campanha foi o ofício muito bem redigido e fundamentado expedido pelo deputado federal pelo RJ Jean Willys, cuja íntegra postamos AQUI. Nele, o deputado pede que "a Estudantina Musical seja salva, no lugar que ela já ocupa, através do tombamento do prédio como patrimônio histórico e cultural da cidade, e entregue à atual direção do senhor Izidro, como já foi feito com outros espaços tão caros à nossa cultura popular, dos quais um dos mais recentes foi o prédio do Cordão da Bola Preta".

O tombamento do prédio histórico pela prefeitura, com a consequente preservação da gafieira, é o reconhecimento pelo poder público da importância da dança de salão para a cultura do Rio de Janeiro.

Por Leonor Costa 
Transcrição autorizada da postagem original publicada no site do Jornal Falando de Dança, AQUI.


Os dois prédios históricos para a dança de salão carioca,
 situados na Praça Tiradentes: à esquerda, em ruínas,
 o prédio da Estudantina dos anos 1930-1960, cujo último proprietário
 foi o português Manoel Lino; à direita, o prédio do atual
 Centro Cultural Estudantina Musical, 
administrado pelo espanhol Isidro Page Fernandez.

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